Nunca poderemos deixar de pensar
que uma das eras de ouro de nossas existências foi a infância. É aquele período
encantado em que todas as memórias nos remetem à nostalgia absoluta. Uma
verdade surge pra quem foi feliz como eu e ancora sua memória na música: os 70
foram bons tempos. Não tiveram a magia dos 60 onde tudo convulsionou em
revoluções completas ou parciais transformando o mundo, muito pelo contrário.
Foram acomodados, moderadamente consumistas e, na América Latina, autoritários.
Mas eu era muito criança, até tinha alguma consciência da situação política
porque minha mãe era professora e meus pais sempre me deram muitos livros. Meu
refúgio maior pra essa realidade que começava a ficar mais difícil para minha
geração sempre foi o som.
Fiz
meu coroa doar uma maravilhosa Eletrola (que tocava até dez lados de Lps
contínuos!) porque ela tinha um pequeno defeito. Por desgaste no potenciômetro
do volume ela disparava um som alto de vez em quando. Meu ouvido e nervos
sensíveis não suportavam aquela surpresa berrona (quem diria que eu seria um
baixista do ritmo mais barulhento que existe...). Os Lps da coleção de minha
casa usei como direção de automóvel em minhas brincadeiras – curiosamente nunca
aprendi a dirigir – de motorista de táxi. Tal fato fez com que meu pai
iniciasse uma coleção de discos nova na próxima vez em que adquiríssemos um som
onde iam aparecer muitas das coisas que ouvi quando menino.
Em
um aniversário do Velho, minha mãe sugeriu que comprássemos um novo aparelho.
Me lembro de irmos em uma loja que ficava quase no Largo do Medeiros na Rua da
Praia chamada de Casa Victor”, onde hoje fica a Livraria Paulinas. Precisávamos
escolher algo estéreo, “moderno”, conforme as exigências da época, que coubesse em nossa renda. Acabamos
escolhendo um portátil Phillips, que funcionava a pilha ou ligado na tomada. As
caixas acústicas eram destacáveis e serviam de tampa para o prato. Também se
separavam uma da outra quando retiradas. Mau ouvido absoluto achava o som pouco
grave, mas aquela foi minha primeira nave pra onde viajei pelas galáxias
sonoras de meu tempo.
Me
recordo dos discos de orquestra que meu pai adquiria. Frank Pourcel ( ... e um
mundo de Melodias nº 21), Paul Mauriat, Ray Conniff, Billy Vaughn, Ferrante
& Taicher (dois pianistas), Mantovani (A Lenda da Montanha de Cristal). Mas
também tinham os Beatles, Elvis Presley, Elis Regina e muitos discos de Samba,
geralmente coletâneas de sucessos da época – “Samba Maior” –, Clara Nunes e
Alcione, enfim, bastante ecletismo. Esse foi o meu catecismo de início de vida,
doutrina melódica, rítmica e harmônica de uma juventude de encantamento com as
ondas mecânicas do barulho. Em seguida, como se eu tivesse me adonado desse
universo, passei a adquirir por insistentes pedidos de verbas coletâneas pop da
época (1976, 77, 78 ...) como as da K-Tel (In Concert, Music Express, Dynamite
...) e, mais adiante, voltada para o astral “Disco”, a onda que tomou conta do
Brasil no fim dos 70 a partir da exibição da Novela “Dancin’ Days” na Globo em
1978-79, como as próprias trilhas de Novelas, alem, é claro da “Discoteca
Papagaio”, “Hippopótamus Disco Club”, Disco 78, 79, 80, etc. Toda essa salada
de estilos foi influência, além de meu núcleo familiar, de minhas primas, meus
amigos, meus colegas de aula.
Não
havia preconceito ainda. A MUZAK comercial que ouvíamos, vejo hoje, era
inofensiva, porque era música. Tínhamos o Village People, o Boney M. e o Silver
Convention, mas junto tivemos o Revival dos 50 e 60 provocado por novelas de
época como “Estúpido Cupido”. Tínhamos variedade e riqueza. Liberdade auditiva
e variedade radiofônica, havia a MPB do Chico e Caetano, Milton e Gonzaguinha
que crescemos ouvindo, e mais, tínhamos aula de música na Escola. Trocamos
nosso portátil por um Phillips estéreo com grandes caixas acústicas (do qual eu
ainda reclamava porque meu sonho era ter um Gradiente, a nova mania da época) e
depois, mais adiante, por um 3 em 1 – Stéreo Music Center – de marca Sharp, que
ainda possuo até hoje.
Fui
parar na banda da Escola Presidente Roosevelt. Maria de Lourdes Porto Alegre,
avó do cara aquele que ganhou o BBB (Dourado) me ensinou um pouco de Piano e
escaleta e me colocou lá. As bandas de Escolas do Menino Deus eram todas muito
boas, como a nossa e a do Duque de Caxias. No Ensino Médio conheci Adriana
Calcanhotto através da professora Nélia do Infante Dom Henrique, que a
descobriu. Por causa disso (e dos Beatles, claro) aprendi a tocar Violão e
contrabaixo. Minha turma ia ao projeto “Unimúsica” da Reitoria da UFRGS,
religiosamente a pé, todas às Sextas-feiras. Adolescemos vendo artistas como
Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro e Cheiro de Vida se apresentarem em
diversos espaços e se tornarem reconhecidos.
Estou
contando tudo isso – e haveria muito mais – pra dizer que a juventude de hoje,
em termos musicais, está severamente enrascada. A mediocridade ronda a mente
das crianças, desde a tenra idade até a maturidade relativa. Expostos a toda
sorte de lixo comercial e industrial – parafraseando Renato Russo – eles estão
viciados, desorientados e, virtualmente, perdidos. O jabá, em rádio, tomou
conta de tudo, tudo mesmo. E as grandes multinacionais – as mesmas que pagaram
pra música sair do currículo escolar – deitam e rolam em tempos de verdades
absolutas midiáticas e censura velada. Tanta liberdade pra compartilhar e
piratear e os jovens, sinceramente, não sabem o que fazer com isso. O que
sobrou pra cultura brasileira são esses pobres repetidores de fórmulas surradas
e rasas: sertanejos, pagodeiros e Funk.
Nada
contra as pessoas que vivem dessa cultura de massa “Low Brow”, mas convenhamos,
em música, só repetir não é o caminho. Pior, dizer sempre a mesma coisa enche
muito o meu saco. Cornice, cornice, cornice. Sofrimento por amor. Violência,
vingança e ódio desmedido. Que porcaria é essa que estamos dando pras crianças?
É realmente normal ver uma pequena de 2 ou 3 anos rebolando “na boquinha da
garrafa” e repetindo “mama eu, mama eu, mama eu”? Onde está a música? Aquela
riqueza de instrumentos das orquestras de elevador, riqueza de temas dos sambas
da periferia do Rio e SP, a revolução dos anos 60, onde estão? Sumiu tudo com o
reverberar tilintante das caixas registradoras dos donos dos meios de
comunicação e com a acomodação dos pais que trabalham dia e noite “pra dar uma
vida melhor” pros seus filhos que abandonaram na frente do computador ou do
vídeo-game muitas horas por dia.
Mas
a música está voltando, pelo menos no currículo escolar. E esse fato enche de
esperança quem teve uma infância rica em música e sons que fizeram e encantaram
o mundo, e que ainda percebe o poder da mais grandiosa das artes. Rezemos pra
que essa (nova) experiência faça renascer a vida do verdadeiro espírito
musical, cada vez mais escondido, quase que banido da cultura pop e que, o Brasil,
possa se orgulhar em um futuro próximo, de uma geração de grandes talentos,
como outrora fez com tantos e não foram poucos. A sorte está lançada e, depende
só de nós, educadores.